A propósito da apresentação do livro de auto-edição no Congresso Internacional "Maria Teresa Horta e a Literatura", Lisboa, 2019
Como artista-plástica, penso que o desenho segue uma linha semelhante à palavra. Tal como a palavra desenhada pelo escritor, que insere o seu pensamento com um gesto sobre o papel, o artista risca e marca com um gesto diversos suportes, criando uma linguagem própria e profunda também a partir de si.
Assim que descobri a poesia de Maria Teresa Horta, algo em mim solidificou, enquanto mu-lher, enquanto feminista.
Entrou em mim de rompante e de forma intensa.
Permitiu-me uma maior segurança no meu próprio trabalho, processos criativos e linhas de acção. A sua poesia já lá se encontrava, bastava ter um nome.
A poesia como arte total entra em nós como uma linha, atravessa gerações e não tem idade, pois contém uma verdade em si. É catalisadora no processo criativo e transforma-se quando traduzida para o desenho.
É um livro que reúne desenhos feitos a partir de poemas eróticos da poetisa.
Participaram na escolha dos dez poemas 8 pessoas que a meu ver se relacionavam com a poesia da escritora.
Há uma diversidade nos poemas escolhidos e também uma amplitude de ver e sentir o erotismo.
A partir das escolhas fiz centenas de desenhos, dos quais seleccionei 30 para a exposição e desses 30 foram escolhidos 10 desenhos para a publicação. Este processo foi longo e bastante exigente, pela depuração e pelos diversos traços criados.
A poesia erótica de Maria Teresa Horta atravessa o desenho em profundidade como uma lâmina, uma mancha de sangue e de suor.
Estes desenhos não pretendem descrever palavras ou ilustrar cenários, partem do poema para outro campo afectivo e simbólico.
É no traço que se criam linguagens e novos sentidos, por impulso ou espasmo.
A poesia, força rítmica, deve ser acompanhada com amor, com prazer.
Fazer é desejar, é sentir, é respirar, é entrar de rompante em nós mesmos.
“É o convite para ler e escolher um poema, a resposta dos olhos e a certeza das mãos no traço – este por fim largado sobre a parede. Tudo eco das palavras, tudo parte do corpo, como quem lê nos lábios (ou nos espasmos da garganta) e adivinha o tom da palavra.”RG.
Palavras de Raul Brandão
"Respira-se de outra maneira. descobrir que a morte não é inevitável endurece. O mundo muda de aspecto. Agora é que eu contemplo a vida - e me perco na vida. Começo a ter medo de mim mesmo e não me posso olhar sem terror. Que é isto, este sonho, esta dor, esta insignificância entre forças desabaladas? Onde hei-de pôr os pés? Eu sou a árvore e o céu, faço parte do espanto, vivo e morro ligado a isto. Sou temeroso e ridículo. Não me desligo do turbilhão azul, sem nome, que me leva arrastado, estonteado, iludido, e ao mesmo tempo discuto, nego e afirmo. Sou ridículo e construí o mundo. Sonho e acabo reduzido a pó. Sou capaz de tudo e um nada me abate. Sou sórdido e fútil e não tenho limites -"
(Raul Brandão, «Húmus»,ed.Húmus, Meães, 1ªed.;Abril 2004, P.55)
Palavras sobre o Húmus e Sopro
Observa-se um campo, o vento agita a erva.
No solo, um pedaço de terra exibe a sua composição: detrito, água e bichos.
A mão toca na terra e sente o estrume, enterra-se. Depois, abre um sulco que se ilumina à medida que é aberto. Rios de ar arejam o buraco.
Raízes tentam elevar as árvores até ao céu.
Agora.
Afastamo-nos deste pedaço de terra e vemos um corpo.
Corpo coberto pela terra e o
ar que entre nele.
S.P.2015
Palavras sobre o Húmus
Húmus é o momento em que a mão faz o gesto da acção - de separar.
Húmus é a descida e a subida (é a respiração que divide o interior e o exterior), desce pelo sonho e volta a subir pela boca em sopro.
Pelo húmus entramos na terra (nas raízes, nos ossos).
Húmus é o momento exacto da fertilidade, do feto e do fóssil, é a arqueologia.
É um pedaço de terra que se (re)descobre.
É presenciar a vida e a morte através da mão e do olhar.
Húmus é o momento de separação do céu e da terra. É o gesto que movimenta esse mesmo gesto, essa vontade de separar.
Húmus é uma acção de (re) descoberta dos sedimentos, que são do próprio corpo.
Entra-se - nos fósseis, nos ossos descarnados. Sai-se - criança.
É o ponto de separação entre a morte e a vida, da mão que criou e do ser que nasceu dessa terra. “É o sonho transformado em realidade".
Para se compreender a acção de introdução e de extracção, pense-se sempre num punhado de terra a ser manuseado - extrai-se a essência da vida, o alimento. É de enorme intensidade este fazer, pela razão do gesto de quem introduz a mão para dentro, de querer
receber a mão do gesto. A obra é comida pelos olhos de quem aprecia o seu nascimento e crescimento.
Todo este momento é intensificado por uma temperatura específica:
corpo quente. O corpo de quem cria equipara-se ao corpo terroso:
é simples este momento, acontece em simbiose - entre o silêncio de cada um e o seu isolamento. A noite coberta de astros mostra-se para quem de olhos fechados realiza, constrói.
Está caído de olhos fechados e com as costas na madeira do quarto delira, espasmos saem-lhe da boca… as mãos agitam-se.
Pinta-se de amarelo, de vermelho, simplesmente pinta-se como uma iniciação. É um corpo, incha-se.
A noite atravessa-lhe a meio, aos poucos enquanto tenta dormir, corta-lhe a respiração
O seu movimento horizontal confronta-se com um vertical, de árvore. Sombra da árvore, sombra da terra, sonha com o pântano, sonha com o outro, sonha com o mexer do seu corpo enquanto movimento.
Desfaz-se em pedaços sempre que se contrai contra a madeira.
O tempo.
Escreve novamente. Acorda com uma luz que lhe invade o quarto, o chão, os olhos, o corpo já frio.
Respira novamente, volta a respirar. Claramente.
S.P.2013
Palavras sobre Entre o Ventre o Umbigo e a Mama
No corpo, ilumina-se a boca, ilumina-se a garganta, iluminam-se os pulmões, o ar sai iluminado. Depois, iluminam-se o órgão do coração e as artérias, todo o sangue vermelho escorre em fluxo contínuo e depois pulsa nos dedos, nos olhos, nos ouvidos, no nariz. Inesperadamente, a escrita escorre dos dedos, e o som da boca. Neste corpo sensível o que é sentido é transmitido imediatamente para o exterior em forma de algo, a arte.
O corpo não se esgota nos seus limites físicos; tal como um terreno, o corpo pode-se estender-se em diversas direcções.
Pensar em corpo
pensar em corpo.
pensar novamente em corpo
pensando no corpo
pensa-se que corpo é
corpo é osso
corpo é osso
corpo é corpo
ser corpo é ter osso.
S.P.2015
Palavras sobre o Caminho
Caminho
Caminho, tal como sugere o título evoca um trajecto que permite um caminhar contínuo e um olhar individual com cada desenho. Feitos a carvão, quase negros, permitem-nos uma envolvência com o corpo do desenho vertical e horizontal. É em torno do gesto intensivo e do que permance na folha, que possibilita um reencontro directo semelhante ao nosso corpo. Quando olhados entramos neles.
Preparação do corpo, processo de sedimentação, de acolhimento, de inspiração antes do enterro. Reencontro um corpo semelhante ao meu, quando olhado entro em si/nele. A fenda escavada na terra, um olhar para dentro.
S.P.2014
Palavras sobre a Puberdade
Aquele que queria chupar o pescoço da menina. A menina que ainda nem saias tinha e umas meinhas às rendinhas de amarelo e cor de laranja. Dizia sempre para a beijarem no pescoço. Ainda não tinha idade para beijar na boca. Ainda não tinha idade para ser tocada e para tocar.
Já usava brincos grandes. A cara da menina que ainda nem batom tinha.
Acabava de escurecer.
Uma noite sentiu um aperto. Limpou-se. Sangue viu. Sangue viu. A menina deitou-se. Passou a usar calças e meias de uma só cor. Agora o que lhe interessava era o seu interior e os seus beijos na sua boquinha; não de menina mas de rapariga.
S.P.2008
Palavras sobre o Caminho- Ligações
A mulher que grita. A mulher que grita. A mulher que grita. A mulher que grita. A mulher da grita. A mulher que grita e que quer gritar. Ouviu ao longe. Ouviu ao longe. Um grito. Um grito. Um grito agudo. Grito agudo. Agudo. Agudo. Agudo. Agudo. Que lhe tocava. Tocava. Tocava. Na boca. Lhe tocava na boca. Lhe tocava na boca. Boca . Boca. A sua boca. A sua boca. Boca.. Sua boca. Sua boca. Sua boca. Boca. Boca. A sua boca vermelha. A sua boca vermelha. A sua boca vermelha. A sua boca vermelha. Vermelha. Vermelha. Vermelha. Vermelha. Ver-me-lha. Lha. Lha. Lha. Ver. Me. Lha.
Aquela paisagem que caminhas pelo cimo do monte. Pode ser um monte que fique num buraco. E lá de cima, olhos grandes te olham. Caminhas então nessa incerteza de que estás mais perto do fim da terra, do que imaginavas.
No fundo de ti bate novamente outro pau. Agitas com toda a força possível. Agitas como todo o momento. Atitude. Palavra sem resposta; resposta com mil e uma boas vozes. Quero-te já! Já te disse que te quero.
O que me dizes. Que fazemos. Que façamos então algo. Façamos algo por nós. Por ti por mim. Por nós.
E tudo acaba por um caminho e tudo acaba por um passeio. Pesa o teu corpo de nunca acabar. Amor. Estás tão longe. Amor. Estás tão longe.
Aproxima-te mais um pouco e sussurra-me mais um pouco que tudo é sempre pelo caminho. Que tudo e tudo e toca de novo a bater com os galhos partidos. Me parto. Parto-me.
S.P.2007
Palavras sobre a Montanha
A tua língua húmida; humedece a tua
ferida no lábio. É da mudança.
É dos novos hábitos.
Aguentas.
Aguentas firme.
Aguentas firme até quando?
Um dia vou subir bem alto. Ao monte.
S.P.2016
Palavras sobre o Cenário
Respira
O momento de silêncio
Dura.
Dura um tempo inexplicável
Enquanto
a mancha,
cobria já um palco
O que resta do cenário
É um grande pedaço
um braço toca no pau,
o pé vermelho
toca no pano
o corpo vira
continua a caminhar
diminui-se a luz.
Silêncio.
S.P. 2016, Enxerto de uma gravação sonora.
Palavras sobre os Ex-Votos
Este grito que acabo de dar é um sonho. Mas um sonho que devora o sonho. Estou realmente num subterrâneo, à volta de mim o ar é imenso mas fechado, pois a caverna tem um muro em todos os lados.
E para a boca a boca e sopro o sopro, fazê-lo passar, não direi já ao ouvido mas no peito do outro corpo.
Num corpo criado. Explode a substância mais previsível. Mãos na boca tentam fechar. Abre-se enquanto as pernas entreabrem-se devagarinho quase em cócoras. Costas que encostam na parede, olhar em frente, começar por abrir a boca, as mãos levantam-se e sobem até aos lábios já abertos. Abrem-se as mãos, unem-se, deixam uma cova côncava, de forma que o ar circule entre elas e a boca. Os pulmões enchem-se de ar, quando expelidos através da boca, preenchem a cova. Entre a boca e a mão.
É preciso gritar é preciso expelir o ar pela boca e pelas narinas e no estômago já não pode haver mais nada senão o vazio. A respiração desce no ventre e faz o vazio depois volta a atirá-la até ao cimo dos pulmões
Para criar não preciso da força, só preciso da fraqueza.
Do vazio do meu ventre atingi o vazio que ameaça o cimo dos pulmões
Posso encher os pulmões com um ruído de catarata cuja erupção me deixaria os pulmões destruídos, se o grito que eu quis dar não fosse um sonho.
Massajando os dois pontos do vazio sobre o ventre, e daí, sem passar aos pulmões, massajando os dois pontos um pouco acima dos rins, faz-se nascer em mim a imagem desse grito
Exército em guerra, desse terrível grito subterrâneo.
Para esse grito tenho de cair.
Grito em sonho, mas sei que sonho, e nos dois lados do sonho faço reinar a minha vontade.
Grito numa armadura de ossos, nas cavernas da minha caixa torácica.
O suspiro de uma boca fechada e no momento em que se fecha
Quando todo o ar passou pelo grito e nada mais.
S.P.2015
Palavras sobre o Inverno Pensei no verde da montanha verde estonteante, acumulador de vidas e tempestades O corpo ondulante, o corpo cansado, o corpo suado O lado bom de uma circunstância. O dia de sol verde O dia de luz enevoada e um saco com pó de pau o corpo morto A língua toca húmida na superfície da árvore.
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